fotos e texto:Manoel Freitas
Um dos rituais que despertam emoção mais forte entre
as nações indígenas do país, a Cerimônia dos Mártires, na Aldeia Itapicuru, foi
retratada pela primeira vez por um órgão de imprensa da região no dia 12 de
fevereiro, que desta feita celebrou o 32º ano da Chacina Xakriabá, crime brutal
ocorrido no dia 12 de fevereiro de 1987, no qual foram cruelmente assassinados
a liderança Rosalino Gomes, seu cunhado Manoel Fiúza e José Santana, cuja
repercussão internacional culminou com a demarcação do território de
aproximadamente 54.000 hectares desse que é o maior grupo étnico de Minas
Gerais. Naquela madrugada, na então Aldeia Sapé, os filhos de Rosalino Gomes,
José Nunes, hoje prefeito de São João das Missões pela terceira vez, e o seu
irmão, o cacique Domingos Xakriabá, com 11 e 10 anos assistiram o corpo do pai
ser arrastado pelo bando de 15 pistoleiros.
A barbárie, encomendada por fazendeiros, um
grupo de grileiros da terra, elevava para nove o número de índios mortos
naquele período, sob a liderança de Francisco de Assis Amaro. Na verdade, o
crime - um de seus dias mais sangrentos - marcou quase três décadas de lutas,
espaço de disputas entre os índios e posseiros, tendo como alvo principal o
vice-cacique Rosalino Gomes, com 42 anos de idade, que exercia forte liderança
na tribo, a partir da disposição da etnia em não abrir mão de suas terras. O
episódio foi resultado de um processo sofrido deste povo para reaver suas
terras, onde várias outras lideranças tombaram. Em face à sua crueldade, pela
primeira vez na história do Brasil foram condenados à prisão todos os acusados
por um crime de genocídio.
O julgamento dos acusados, aguardado com
grande expectativa pela imprensa mundial e sob pressão de entidades e
lideranças indígenas de todo o país, foi realizado pela Justiça Federal em Belo
Horizonte, em setembro de 1988. Os matadores foram condenados a 81 anos de
prisão. A mãe da liderança, Anísia Nunes, que acompanhou esse ano a Cerimônia
dos Mártires, na época grávida de dois meses, foi ferida com um tiro no braço.
A partir daquele instante, em suas 34 aldeias, morria a voz do vice-cacique – e
nascia um grito.
No dia 12 de fevereiro, o ritual teve início
na casa da liderança da Aldeia Itapicuru, quando do assassinato pertencente a
Aldeia Sapé. A partir daí, iniciaram ao som de cânticos a marcha de dois
quilômetros até o cemitério erguido ao lado da casa que estava sendo construída
pelo vice-cacique Rosalino antes de sua morte, que perdeu suas paredes de
enchimento, mas que tem conservada sua estrutura de madeira. O campo santo é
protegido por cercas para manter viva na memória dos povos indígenas a chacina
e os rituais que são realizados no entorno, com adornos preparados durante
vários dias, sobretudo por mulheres e crianças, de modo que a barbárie foi uma
lição passada como ato de heroísmo de pai para filho.
Sob sol escaldante, o ritual em movimentos
compassados foi documentado por O NORTE. Antes da concentração e oração ao lado
dos túmulos e da residência, crianças, jovens e adultos, em sua maior parte
pintados e usando artesanatos, em fila entravam na mata, ao som de “eu sou
Xakribá, na mata eu sei andar”. A
cerimônia, por sua importância para outras etnias e comunidades tradicionais,
principalmente do Norte e Vale do Jequitinhonha, é acompanhada ao longo dessas
três décadas por geraizeiros, quilombolas, catingueiros, vazanteiros,
veredeiros e apanhadores de flores. Na jornada a pé, na mata entrelaçada e na
estrutura de madeira, os cantos e rezas enalteciam o respeito aos mais velhos e
à importância dos rios e preservação de suas nascentes.
Um dia antes das cerimônias, a reportagem do
JORNAL O NORTE ouviu a liderança da Aldeia Itapirucu, Zé Fiúza, que após o
tiroteio tentou socorrer seu irmão Manoel Fiúza, que morreu em seus braços
quando chegava a Itacarambi para buscar socorro. Em tom emotivo, lembrou que
infelizmente a história de seu povo foi escrita à sangue. “Ninguém desejava que
eles morressem, de maneira nenhuma, mas para nós o Rosalino foi o maior
guerreiro, como se fosse uma árvore que cortaram, da qual brotaram muitos bons
frutos”, revelando que até então os índios usavam escondidos o artesanato e a
pintura corporal, para não serem perseguidos, “daí a gente começou a reviver,
porque da maneira que estava indo nosso povo estava acabando, porque índio vive
é de cultura e os jovens têm que ser o nosso amanhã”.
Também na véspera da Cerimônia dos Mártires,
o cacique Domingos Nunes, que enche os olhos de lágrimas ao lembrar a cena de
seu pai ser arrastado pelos pistoleiros, disse que “hoje a gente não tem mais
aquele sentimento de dor, porque ele mesmo falava que não ia conseguir e
preparava a gente, não ia até o final, mas com sua morte, deixou a terra livre
para o povo”. Pausadamente, o cacique,
que assumiu a liderança das 34 aldeias com 27 anos, explicou que “a partir da
chacina, ganhamos o território, começamos a nos organizar, porque até então os
indígenas não tinham território, nada disso, viviam debaixo dos pés dos
fazendeiros, trabalhando como agregados”.
O também professor Domingos conta que, após o
episódio, o Povo Xakriabá chegou mais perto ainda de outras etnias, “de Minas,
da Bahia, quilombolas, Tupiniquins, aí deu uma guinada na nossa cultura, porque
as pessoas tinham medo, eram discriminadas, não tinham a liberdade de aparecer
na cidade com a pintura e tudo, tinham que ir disfarçados, se falasse que era
indígena então...”
Com 68 anos de idade e 13 filhos, “vivos só
8”, a índia Otília Ferreira de Araújo, da Aldeia Itapicuru, acompanhou na casa
do parente Zé Fiuza o ritual de pintura corporal e dos mantimentos para os
convidados. Além de ajudar em todas as atividades, “eu benzo desde que era
nova, benzo de tudo quanto é coisa e rezo, sou rezadora”. Ela recorda que “na
época, que começou a luta, fomos trabalhar no Morro Faiado, aí do Morro Faiado
nós fomos para o Sapé, onde fiquei toda a vida, enquanto a guerra esquentava e
aí no dia que ele (o índio Manoel Fiuza) ia morrer, ele chegou a minha casa
tarde e falou “vou ali porque vou morrer”. Relata ter aconselhado: “o que você
vai caçar lá Manoel, por que você não dorme aqui pra ir amanhã?”. Disse ter
falado pra ele para não ir, “porque ele
já estava ameaçado”.
Dona Otília Ferreira de Araújo falou a O
NORTE ao lado do sobrinho Edvan Pereira Neves da Silva, de 21 anos, o
Srêwakmõwê Xakriabá, “orgulho para toda a tribo, porque, além de preservar
nossas tradições desde menino, ingressou na UFMG em 2017, onde faz Ciências
sociais e humanidades, um curso específico”. Explica que Srêwakmõwê é “um
espelho”, informando que o sobrinho é casado com Janaíne Nunes da Mota, de 22
anos, “desde 2015 na UFMG cursando Ciências da vida e da Natureza, igualmente
curso de formação Intercultural para educadores indígenas”.
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