ITACARAMBI: Sobre a terra em que nasci

                                                        DUPLA DE CANTORES, ZÉ MELONGA E ZÉ MELOSO
As raízes indígenas dos moradores de Itacarambi se fazem presentes na pele e na memória. As casas coloridas, os muros pintados e as praças cheias de bancos, onde os jovens se encontram e os idosos se sentam para descansar do sol forte, fazem de Itacarambi uma cidade viva, como poucas. Seus moradores são festeiros e guardam tradições que andam desaparecendo. Folia de reis, pastorinhas, moda de viola, cantiga de roda. Referências que vêm de suas raízes quilombolas e indígenas, como tantas cidades às margens do rio São Francisco.
Mas Itacarambi ainda tem uma forte relação com essas raízes, principalmente com a comunidade indígena de São João das Missões. O município é popularmente chamado de  Funai, uma referência à época em que ele era protegido pela entidade, Fundação  Nacional do Índio. “Muitos moram aqui porque vieram corridos de lá”, diz José Antônio Cândido Bispo, de 50 anos, mais conhecido como Zé Melonga, tocador de viola que faz dupla com Zé Meloso. Na década de 1980 houve uma revolta. Todos que fossem posseiros e não fossem remanescentes indígenas tinham que assinar um documento comprovando a propriedade da terra e que não o fizesse deveria sair. “Os índios colocaram fogo, comeram gado, porco, galinha, fizeram de tudo para tirar o povo de lá”, explica. Muitos abandonaram suas terras e foram para Itacarambi.
O conflito de terra não acabou. Alguns dizem que o pessoal da  Funai querem invadir a cidade. “Não posso dizer que é verdade, porque é conversa de rua, mas a proposta eles tem. Eles dizem que é terreno deles, que tem que demarcar”, conta Zé Melonga, que torce para que nada aconteça. “Ninguém quer guerra. O pessoal de lá é amigo de todo mundo aqui, a maioria tem parente.”
Porta de casa
Não é preciso andar muito para encontrar alguém que conheça× João das Missões. Benedita Nuno Maceda, uma senhora de 90 anos que nasceu na “Funaia”, como ela mesma diz. Hospitaleira, abre caminho para o povo que vem de fora entrar. Ela logo se senta em uma cadeira de plástico à beira da porta de sua casa, alisa a saia plissada, ajeita a blusa de renda e passa a mão pelos cabelos brancos, vaidosa que só. Para falar do tempo em que vivia na sua cidade natal, Benedita olha nos olhos, com demora, como se ajeitasse as próprias lembranças.
Ela conta do tempo em que trabalhava de enxada, moía cana, ralava mandioca, fazia pano, e tecia no tear. Tempo em que cantava reis, batia caixa, rezava no Bom Jesus da Lapa e na festa de Santa Cruz. Benedita reza até hoje, e abençoa quem precisa a manter sua saúde e sua família.
Foi pra Itacarambi em 1965. Nessa época já era casada, com um homem que não era pra ser seu. “Lá não tinha nada de namoro. A moça não conhecia o rapaz e o rapaz não conhecia a moça. Os padrinhos levou eu e minha irmã pra casar, ela com 16 e eu com 18. Chegou lá não sabia qual era qual e disse ‘essa aqui é sua’. Quando eu casei meu marido tinha 16 anos”, conta Dona Benedita, rindo, sem reclamar sua não-escolha
Desde que se mudou para a cidade, fez casa, fez família e 13 filhos. Nunca voltou. “Diz que o povo da” funaia’’ é brigador.” Mas suas lembranças não são de briga, e sim de um tempo de grande fartura. Quando perguntada sobre o que mais sentia saudade ela logo responde que era de andar de animal, montada, de aqui pra acolá. E olha para o lado, um olhar profundo e sem rumo. Talvez se imaginasse sentada em um cavalo, galopando pelas terras que marcaram sua infância e que nunca mais voltou.
Texto e fotos: Juliana Afonso


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